Revisão: Davi Sousa
De todas as franquias da mídia de jogos, poucas alcançam o apelo popular de Ace Attorney. Sendo referenciada diariamente por meio das redes sociais, ela guarda um lugar muito especial no peito daqueles que caíram de cabeça em seus jogos, em suas histórias e reviravoltas. É por isso que foi tão doloroso ver títulos da série serem perdidos com o encerramento da eShop do Nintendo 3DS, revelando a fragilidade da preservação histórica de jogos.
Contudo, durante a Showcase da Capcom na Summer Game Fest de 2023, no dia 12 de junho, a publisher agraciou seus fãs ao revelar uma nova coleção de Ace Attorney, contendo os títulos protagonizados por Apollo Justice, que compõem a segunda trilogia da série principal e ainda não haviam sido relançados em plataformas modernas.
Em meio ao anúncio, feito às vésperas do lançamento da versão remasterizada de Ghost Trick: Phantom Detective, obra de Shu Takumi, criador de Ace Attorney, vi-me pensando em toda minha história com a franquia. Lembrei-me de quando primeiro conheci a série, ainda sem saber ler direito em inglês, perdendo-me nos diálogos e nos puzzles, sendo punido constantemente na tela do meu pequeno DS Lite.
Por outro lado, também lembrei-me de quando a série de fato me conquistou, há poucos anos, quando mergulhei de cabeça no incrível The Great Ace Attorney. Em meio aos pensamentos, considerando como a mídia engatinha com seus sistemas rudimentares de preservação, achei melhor apenas sentar e escrever o que há em Ace Attorney que nos comove, fascina e encanta tanto, criando um legado que nunca poderá ser esquecido.
Leitura em movimento
Lançado em 2001, ainda no Game Boy Advance, o primeiro título da série nos apresenta a Nick, um rapaz sem experiência profissional que ocupa o espaço de advogado de defesa pela primeira vez para proteger seu grande amigo, Larry Butz. Na corte, somos apresentados a um verdadeiro campo de batalha, onde forças antagônicas (defesa e promotoria) apresentam provas, testemunhas, argumentações e acusações com o objetivo de alcançar a verdade de um tenebroso crime. Mesmo inexperiente, Nick tem ao seu lado sua mentora, Mia Fey, que o guia e o estimula a nunca recuar.
À primeira vista, Ace Attorney é uma grande sátira do genêro policial. Com deduções que beiram ao absurdo e vilões caricatos, é muito nítida a forma como a equipe por trás da obra busca provocar os clássicos da literatura, desde as conclusões surreais de Auguste Dupin até os métodos pouco convencionais de Miss Marple. Com o tempo, contudo, o jogo abraça a essência autoral, passando a dizer algo por meio do humor, dos casos, da relação entre clientes e pelo papel de Nick enquanto servidor da justiça.

Em meio aos casos do primeiro jogo, conhecemos Miles Edgeworth, um promotor que passa a rivalizar com Nick. Os confrontos que se passam dentro da corte ganham cores, revelando um confronto muito mais amplo, um debate de ideais. Afinal de contas, se é dever da defesa proteger o cliente e da promotoria indicar um culpado, onde as linhas de justiça, verdade, ética e dever começam, e onde terminam? O jogo acaba em um caso que conclui não o enredo, mas o argumento da narrativa, quando devemos defender Miles de uma acusação de assassinato.
Nos jogos seguintes da trilogia inicial, vemos um aprofundamento do tema, como uma tese sendo escrita diante de nós. Na continuação direta, Nick passa por um difícil caso que o faz questionar o papel de defesa como um todo: afinal, todos têm seus direitos, certo? Porém, em situações extremas, o quanto devemos lutar pela defesa de um caso perdido? Sacrificar uma vida inocente é uma justa moeda de troca para um veredito positivo?
Quando chegamos, por fim, à conclusão da trilogia, é o próprio senso de justiça que é desafiado, quando passamos a nos questionar se devemos ou não seguir o axioma dura lex sed lex (a lei é dura, mas é a lei). Trials and Tribulations, o terceiro jogo da série, não é apenas um excelente fim, mas uma obra por si só extraordinária, comovente, madura, consciente e reflexiva.
Em meio ao cômico e ao absurdo, Shu Takumi apresenta um talento impressionante em despertar tanto em nós a partir de uma narrativa tão amarrada, fechada e marcante. Apesar disso, acredito que foi em The Great Ace Attorney que a série atingiu seu ápice.
Após ter trabalhado no quarto título da série, que passa o protagonismo ao jovem Apollo Justice, Takumi se afastou dos jogos principais, que passaram a ser trabalhados pela equipe responsável pelos spin-offs Investigations, protagonizados por Miles Edgeworth. Após trabalhar ao lado da Level-5 no crossover com a série Professor Layton, ele criou o spin-off que gira ao redor de Ryosuke Naruhodo, parente distante de Nick, com dois jogos que se passam no século XIX.

Seguindo os passos dos jogos originais, The Great Ace Attorney convoca uma gama de personagens memoráveis em casos bizarros, mas é em seu subtexto que encontramos ouro. Com um texto mais denso desde o primeiro caso, somos transportados a uma Inglaterra steampunk, onde encontramos promotores vampirescos, suspeitos arrancados das páginas de livros de Dickens e uma terra hostil à presença estrangeira.
Afinal de contas, o grande tema da saga é a Lei, que se perpetua por homens em posições de poder, apenas visando o benefício das elites e massacrando os pequenos. Aos poucos, o que era subtexto se transforma em texto, literal, com casos que giram ao redor da descriminação, do racismo e da intolerância, fazendo-nos confrontar o sistema como um tudo, em uma conclusão que, francamente, até hoje me deixa arrepiado apenas pela música.
As inspirações literárias de Takumi saem do papel na duologia, primeiro quando encontramos Herlock Sholmes, uma versão satirizada do personagem de Conan Doyle a partir da visão de Maurice Leblanc, e posteriormente quando defendemos Natsume Soseki, autor clássico da literatura japonesa. Aqui, o autor não esconde sua pretensão: fazer literatura em movimento. Ao estabelecer uma fórmula desde o primeiro título, ele se aproveita do gênero de adventure games para apresentar um texto rico, com a narrativa alinhada a todo instante com a experiência de jogar, colocando-nos no lugar do advogado e dando-nos a conscientização das nossas ações.
Estilo e Ritmo
Apesar de tudo que escrevi até então, é impossível separar Ace Attorney de sua tão característica estética. Os designs dos personagens são memoráveis, fazendo-os retornar sem gerar estranhamento, visto que cada um agrada ao público à sua maneira. Alinhado aos designs, estão os diálogos, escritos com um ritmo muito característico, entregando piadas em cima de piadas sem causar barrigas nos casos mais longos.
Além do texto, as animações dos personagens, acompanhadas de sons pixelados que simulam vozes gibberish, contribuem grandemente ao ritmo, especialmente quando levamos em consideração as músicas, sempre apontando os momentos de tensão, relaxamento, drama, pontos de virada, etc.
O mundo respira nos jogos da série, com coerência e harmonia, com peças de quebra-cabeça que sempre se encaixam com exatidão. Não apenas isso, mas é louvável como a equipe é capaz de fazer os momentos mais absurdos serem coerentes, desde um papagaio que é levado à tribuna de testemunha até bonecos de cera que carregam informações de crimes antigos. De acordo, tudo isso já faz a franquia ser memorável, mas termos esses elementos em função a um texto sério e que faz refletir é o que a transforma em obra-prima. E sinceramente, é por isso que mal posso esperar pelo lançamento da nova coletânea.
O post Por que amar Ace Attorney? apareceu primeiro em NintendoBoy.
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