Review | Decarnation

Desenvolvedora: Atelier QDB
Publicadora: Shiro Games
Data de lançamento: 31 de maio, 2023
Preço: R$ 46,99
Formato: Digital

Análise feita no Nintendo Switch com chave fornecida gentilmente pela Shiro Games.

Revisão: Marcos Vinícius

O horror pode tomar muitas formas. De um ataque zumbi à presença de entidades cósmicas incompreensíveis, é o contraste entre o mundano e aquilo que escapa de nossa compreensão que o cria, fazendo-nos temer não apenas pelas nossas vidas, mas também por nossas crenças de mundo. Particularmente, quando falamos de tais narrativas, tenho um apreço em especial ao terror psicológico, quando o horror é criado e enraizado em nossa própria compreensão, expandindo-se em nós a partir do mesmo mundano que buscamos proteger.

Quando bem-feito, um bom terror psicológico cria monstros sem buscar o fantástico – estes possuem valor também, mas em outros sentidos —, encontrando em pessoas ordinárias os nossos temores mais profundos: é o caso de Dias Perfeitos, de Raphael Montes, que nos coloca na perspectiva de um sequestrador psicótico, ou Assim na Terra como debaixo da Terra, de Ana Paula Maia, utilizando-se do abandono para traçar paralelos com o desprezo à população carcerária brasileira, e o é especialmente presente em Misery, de Stephen King, não por ser melhor que os anteriores (ao menos não a meu ver), mas sim por ser a grande inspiração por trás de Decarnation.

Sim, Decarnation é um bom, velho e delicioso terror psicológico, evocando a mesma relação entre carcereiro e encarcerado presente tanto no romance quanto no longa Misery, adicionando à fórmula um mergulhar profundo na psiquê da protagonista, que aos poucos degrada-se. Em linhas gerais, o título é uma fácil recomendação aos fãs desses tipos de narrativa, embora apresente alguns problemas técnicos que podem tirar um pouco da experiência, mas nunca completamente. Partamos do princípio.

A Vida Mundana

Decarnation é dividido em quatro partes muito bem definidas: a introdução do mundo, o rapto, o confronto e o desenlace. Nas cenas iniciais, somos apresentadas a Gloria, uma dançarina em uma Paris na virada da década de 1980 para 1990. Nua, posa a um escultor em seu pequeno atêlier, que a encontrara em uma de suas apresentações no cabaret onde trabalha.

Dias se passam, e encontramos Gloria repousando em sua cama, sendo acordada pelo bater na porta de sua namorada, Joy. Com a finalização da estátua, pretendem visitar a escultura exposta no museu de artes. Ao chegarem lá, contudo, Gloria é surpreendida a ver um homem estranho se esfregando no bronze esculpido a partir de seu corpo, gerando um mal-estar tão grande que a faz partir em disparada, sem ser capaz de compartilhar com Joy seu pavor.

Outro corte, e vemos a protagonista nadando em uma piscina pública. Tendo seu corpo como instrumento de trabalho, tem grande apreço em deixá-lo em forma, mas utiliza o exercício também como forma de abstrair, esquecendo-se de seus anseios. Mais um corte e, por fim, vemos uma performance noturna de Gloria, quando vemos em sequência um diálogo entre ela e seu chefe, Aldo, que anuncia sua intenção de conversas a respeito de seu futuro como dançarina.

A personagem se arrasta de volta a casa, apenas para encontrar rosas em sua porta e tendo à sua espera um telefone impaciente. Do outro lado, uma voz animada, oferecendo uma oportunidade dos sonhos: uma turnê mundial, pela qual Gloria arrastaria quarteirões. Terminada a conversa, a cama oferece seu refúgio.

Após uma noite de sonhos conturbados, diversas cenas guiam Gloria a seu inferno pessoal, tornando-a exausta, desesperada, e no auge de sua angústia retorna a ligação do dia anterior. E é neste momento em que sela seu destino: em uma mistura de ingenuidade com a coragem de quem não tem nada a perder, marcha em direção a um homem que a engana e a sequestra, jogando-a em um cativeiro.

Tomo a liberdade de me estender na contextualização narrativa visto que, em síntese, a obra gira ao redor de sua trama. Sendo um adventure game que toma forte inspiração na engine de RPG maker, a experiência do jogar reside em mover a personagem em algumas cenas, passar por alguns minijogos e resolver poucos e simples puzzles.

Não que esse lado do título seja ruim; é apenas secundário, dando palco a uma história intrigante de uma mulher que luta por sua liberdade, e de que formas lida com seus dilmeas internos, que aqui são exteriorizados, tomando formas distintas e macabras. Falemos destas antes de retornarmos à análise narrativa.

O mergulho à loucura

Apesar de direto ao ponto em sua introdução, a obra passa a ser dividida entre o real e o onírico: presa em um quarto escuro e sufocante, Gloria passa a viver sua rotina sobre os olhares de um homem que se auto-denomina “Mestre”, tendo como única companhia seu mordomo, um homem submisso chamado Bob. O espaço minúsculo onde podemos nos mexer representa com maestria uma sensação terrível de claustrofobia, jogando-nos diretamente ao cárcere com a protagonista.

Assim, surge espaço à introspecção, fazendo Gloria sonhar com uma Paris disforme, tomada de criaturas nefastas e recheada de desespero. Em seu pior, contudo, é quando consegue refletir, não apenas sobre sua situação, mas sobre tudo ao seu redor, guiando o jogador por seu raciocínio lógico e psicológico que a transforma, move, faz agir, paralisa.

O título se afasta, e muito, do gênero Survival Horror, sem apresentar um labirinto com sistema de inventários, trancas e chaves. Aqui, há apenas uma mulher presa consigo mesma, que busca a todo instante não sucumbir, agarrando-se à esperança de um dia se ver livre. Monstros dão espaço a representações disformes de si mesma, aparições dialogam com seus sentimentos e puzzles simbolizam um aspecto de sua vida.

Apesar do fantástico aqui se fazer presente, o jogo sempre nos trás de volta à realidade. O irreal aqui é criado pela protagonista, que busca fugir, mas sua condição a compele a se deparar sempre com as grades à sua frente. Por esse motivo tracei a comparação inicial com Misery: no romance, um autor é sequestrado por uma enfermeira obcecada por suas personagens. O livro é dividido entre trechos do romance, que apelam às fantasias de liberdade do prisioneiro, e entre os trechos em que o autor precisa se deparar com sua condição real. Eis, então, quando o terror psicológico fascina: ao invés de apelar ao impossível, somos convidados a pensar, em todos os instantes, no quão possível e real o absurdo das ações que vemos é.

Contudo, sendo Decarnation um jogo, e não um romance, precisamos olhar para sua estrutura também a nível técnico, e acredito que aqui encontrarmos os maiores defeitos da obra. Os Puzzles são competentes e divertem, mas os minijogos de ritmo, nas cenas de dança, são inconvenientes e se estendem muito além do que devem. Saindo do escopo de game design, encontrei diversos problemas com o som do jogo, especialmente com as músicas, que paravam de tocar subitamente ou simplesmente não davam espaço a outra em suas respectivas cenas, gerando uma verdadeira dissonância sonora.

Por último, apesar de entender que os ambientes devem ser estreitos para sentirmos na pele a situação da personagem, considero os diálogos muito pequenos, o que sempre é uma pena para jogos com maior foco narrativo.

Um respiro

Com uma boa pixel-art, capaz de traduzir as expressões de personagens com esmero, uma excelente trilha sonora e um texto muito bem construído, Decarnation nos guia a uma verdadeira jornada de introspecção. Não entro nos detalhes, mas a virada do plot e sua resolução são, de forma branda, sensacionais, mesmo quando previsível, gerando uma catarse fulminante.

Acredito que o único problema narrativo do jogo é seu desenlace: mesmo com Gloria tendo resolvido seus dilemas, a obra parece insistir em alguns assuntos que, aparentemente, já foram resolvidos, mas nada que tenha estragado o corpo geral.

De fato, minhas ressalvas residem especialmente nos problemas técnicos que encontrei, ao menos na versão de Switch. Apenas para exemplificar, em toda a sequência final que leva aos créditos o jogo simplesmente não reproduziu as músicas necessárias, gerando uma frustração profunda.

Além disso, por algum motivo, os créditos da minha versão vieram estranhos, claramente com menos nomes que deveriam (a seção de playtest, por exemplo, estava vazia). De todo modo, recomendo sem sombra de dúvidas esse delicioso terror psicológico a todos que anseiam por uma curta porém prazerosa experiência de horror.

Prós:

  • Narrativa bem delineada e com boas conclusões;
  • Pixel Art detalhada e com bons e reconhecíveis cenários e personagens;
  • A trilha sonora encanta.

Contras:

  • Problemas técnicos com o som tiram muito da experiência;
  • O minijogo de ritmo, que se repete e se estende muito além do que deve;
  • Diálogos pequenos.

Nota Final

8

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